segunda-feira, 13 de novembro de 2006






ASAS

DE

ORFEU


Escritos do Inferno


BENILTON CRUZ


O AJUNTADOR DE PÁSSAROS

A palavra inventou o homem que é apenas a forma de perguntar a pergunta. Somos um sonho que se reencontra constantemente, por isso inventar e ler são a mesma coisa: a resignada invenção, como isso que acabei de te dizer agora. Sou Homero criança, e não deixarei o grego morrer mesmo que seja a última lança, esse hexâmetro em ruínas, esse canto que invoca as Musas da Morte no papiro que em rolos se juntarão a outras Ilíadas e a outras Odisséias, em pedaços que são todos os homens e mais eu, que me chamo Homero.

Eis aí a cilada: o que se lê não é o que está escrito. Não se extinguem as palavras, mesmo aquelas que não foram criadas. O homem é o animal que cata os rastros no abismo das línguas e não pode ignorar a morte que é a morada de cada palavra. Não pode ignorar o que recorda, se a poesia não é mais recordar. Não pode aceitar o drama que desfez o legítimo entendimento humano ao tempo que escolhe a obra e a faz esquecer.

Não há mais o que celebrar, a não ser:

Ajuntar os pássaros,

Colecionar os cacos.


PARA SER DIGNO


A tarefa da poesia é preparar e anteceder o caminho que nós nunca iremos saber quando começamos a escrever. O que não foi feito será obra da poesia, e o que já foi dito deve ser reescrito.

Então escrever é prover. Acontecer. Assim é o escapar da palavra; escrever é escapar do mundo: o poeta se salva do perigo de ser algo não sendo nada. Temos essa consciência de que no nada é que está a segunda parcela, aquela que te falta e te deixa triste sem que saibas o porquê.

Se não sabes lidar com o vago, o melhor é não assinalar, e até é bom escapar, sair de fininho, e deixar tudo como está.



PLATERO E ROCINANTE


— O que levas, Rocinante, um homem ou um sonhador?

— Não sei. Sei que ele é como eu sou. Melancólico e triste, e me diz que é o meu senhor. Eles dizem que são amigos como eu de Ruço sou. Talvez um pouco de amizade possa ser bom. Temos em comum a amizade, o que é um belo tema para um poema e para a vida.

— E tu, Platero porque és palrador?

— É verdade, conversamos enquanto comemos e nossos amos nem percebem o que dizemos.

— Se soubessem, nos matariam, pois só rimos e rimos dessas ridículas criaturas. Por isso evitamos a palavra. Não há nada mais doido do que querer dizer as coisas por meio desses grunhidos e desenhos.

Até Sancho é louco ao aceitar a Baratária ilha.

— Tanta loucura para tão pouca criatura.

— Enfim, a obra é melhor que a vida.

— Sem dúvida, e o caminho é a razão e a loucura.



O POETA NÃO SABE SABER SER


O poeta não sabe saber ser. Não sabe ser porque tem que oscilar e escrever. Escrever é não saber. O poeta escreve para que as palavras tenham sabor e não saber. Escreve para que o amor possa ser amor. Escreve para a beleza aparecer e ser. Escreve para dar sentido à ilusão do sentido. Como pode dizer a linguagem se ela é criação, mera passagem? O poeta calibra a miragem cuja palavra lhe é a perniciosa grade.

Escrever é uma aposta, sim, mas não esperem ganhar. É necessário abandonar um pouco tudo do que está ao redor, inclusive a vontade de vencer. É melhor aventurar-se: outra coisa não vale mais fazer. Arriscar é parte essencial deste jogo. Mas, escrever não é o jogo porque tudo pode se perder, mesmo aqueles que se dizem vencedor.

A poesia é apenas o começo do topo onde brinca de poeta o homem que sabe que a palavra acerta quando falha e erra quando era a certa. Daí que se inicia tudo de novo e de novo do fim o princípio apenas começa.



PARA TE DESPERTAR MAIS CEDO


Fiz isto para que não leias. Para que não me encontres em lugar nenhum. Para que saibas que sou mágico. Que escrevo com as maçãs derrubadas pelos relâmpagos. Que decifro o espelho verde daquele rio. Que conheço o caminho das aves que migraram para o oeste do teu coração. Eu não estou aqui e não sei do que dizer. Não sei porque te provoquei esta leitura. Talvez para te despertar mais cedo. Sei pouco de ti. Sei apenas que estás aqui.





VERSÂNIA

Onde o verso começar, lá estará o sinal para parar. Escrever é assinalar o fim. Toda palavra é o primeiro cinzel na pedra e sua faísca na sombra. A linha escreve-se em círculos e em manchas de tinta quer ficar. Sair como uma palavra e depois abandonar. Chamarei de Versânia pois que todos lembrarão de ti que és o começo, e também eu, que te adianto. Saberás que algum dia um leitor te descobrirás como um livro que esqueceste, assim como eu te esqueci e te encontrei no fundo da gaveta.

No escuro é que aprendemos a terminar de ler ou a começar a escrever. É assim que se escreve: abandonando e reencontrando. É só um livro que se escreve. Por que dois? Escrever um segundo livro é fugir do primeiro. A perfeição está morta com as neves de Munique.

Todo verso é um epitáfio: Sylvia Plath me ensinou este.




JÁ QUE SAÍ PARA VELEJAR

Já que saí para velejar, o que escrevo são coisas encontradas depois da procela. Juntar os cacos, reparar a quilha, reabrir as escotilhas, içar velas molhadas e apostar na ventania.

Já que saí para velejar, há tantas estrelas quanto há de mar. O céu se abriu sobre um caminho de águas. Tenho mil braços e seiscentos remos, sobram-me quatrocentos. O tempo vem do futuro e o passado não serve para mais nada. Preciso navegar porque preciso sair para viver mais que a vida. Boa sorte é a minha viagem.

Para o viajante, não existe nenhum porto e o comando é a ordem em uma palavra. A alma não é pacífica; o sonho é atlântico.

Se não navegaste, não conheceste.




DEUS ESTÁ A OESTE DE TEUS OLHOS


Quando procurares por Deus olhe para o homem, Deus está a oeste de teus olhos, está também onde começa o teu olhar. Está em tua fuga e em tua chegada. Ali, onde perceberes a derrocada. Onde os muros se levantaram mais alto. Onde a fome enfraqueceu o corpo. Onde a miséria adoeceu a alma. Ali também está Deus, porque Ele é feito do que te destrói. Também Deus tem suas misérias. Foi preciso escolher para existir; foi preciso eleger para subsistir. Foi preciso atravessar desertos e abrir os mares. Foi preciso subir montanhas e obedecer as sarças e andar descalço junto ao fogo. Foi preciso cansar o Livro e adorar as escrituras. Foi preciso ser Um para poder existir e dizer Eu sou o que sou para ser o que é Nenhum.



COMO VIVER DENTRO DA CHAMA

O mundo cabe dentro de um segredo, assim queiras me ouvir. Para isso basta o sono de uma árvore e sua sombra de milênios. Sob o colóquio dos pássaros deixarei meu livro aberto como uma lira, para aprender com os que partiram, que o segredo da canção é ouvir o que diz o trovão dentro do sonho. Depois, com a mão sobre Os Lusíadas salvarei o reino, nadando com um só braço como quem escreve apartando as ondas e não deixando o texto borrar com água salgada do tenebroso mar. Sim, sou brasileiro, dê-me passagem que ainda vou salvar o mundo inteiro, mas para isso ensinem-me a largar o poema na margem, especialmente ali, onde a curva dobra-se lenta, e geme como o eixo do mundo.



JOHANNES KEPLER


Errante como o astro mais distante,

Obsessivo como o sol incessante.

Acreditou na geometria como a língua

Que harmoniza a mente do Homem à de Deus.

Viu num floco de neve o hexágono

Dos átomos da molécula da água.

Suas leis dos movimentos dos astros

desvelaram a música das estrelas

como Pitágoras há mais de dois mil anos.

Seu epitáfio mostra a medida do seu esforço:

“Eu medi os céus, agora, as sombras eu meço.

Para o firmamento viaja a mente,

na terra descansa o corpo”.



QUANDO EU DISSE NA FRONTEIRA

Para o meu velho Whitman

Quando eu disse na fronteira que era brasileiro, não me envergonhei das perguntas que me fizeram e nem tive medo do preconceito de me verem melhor do que eles. Tive até a audácia de responder na língua deles que todos nós somos estrangeiros e que eu estava a caminho do que era meu e do que sempre me esperou do outro lado da fronteira.



A VIDA SÓ LHE AJUDOU A CONHECER-SE

Quando abriu o caderno, o que aprendeu faiscou-lhe o que sempre quis escrever. Parece que lembrar e esquecer é o ato verdadeiro de escrever, que é encontrar a palavra pelo meio. Passou a vontade porque não quis lembrar. As coisas não se completam. Assim são as palavras; elas têm sentido, quando as esquecemos e lembramos que esquecer pode ser uma forma de recriar. É necessário deixar esquecido para ser até mais bonito. Para escrever não é preciso muito movimento; só os olhos já são suficientes. Mesmo o sonho é uma confissão de um sonho para outro sonho. O homem está sempre no meio.

Quando ele abriu o caderno, na verdade, ele abriu um pouco mais que uma possibilidade de escolha. Escrever ou não, tanto faz. O que se revela está intrínseco e é volátil, é a parte mais escura dessa linha que olhas. Mesmo aqui, a palavra está sempre fora do alvo. No branco do papel tudo pode ser alvo, e a seta, como esta caneta, que é a arma que se protege do invisível.



PALAVRAS DENTRO DA NOITE

A morte existe para que lembres que no começo estão as ervas e o musgo. Para que lembres que o nada é ainda superior às coisas que imaginaste. Foi da morte que veio o caminho mais suave. Foi da morte que veio o canto de Orfeu. Foi do rio mais profundo que as sombras falaram todos os nomes à natureza e ao espírito num diálogo de pedras. A morte existe para que esqueças o trabalho que culminou a herança dos dias e para que repouses na lápide diurna. A morte é a forma mais digna de se respeitar a vida. É na morte que nos aproximamos da vida.



CORTA-SE O SILÊNCIO COM A FALA E O SILÊNCIO CORTA A FACA

Corta-se o silêncio com a fala e o silêncio corta a faca. O rúmen de treva a regurgitar do caos: a lâmina e a tempestade, esta palavra, a fenda que fala, a fímbria que falha e passa pouca e passa. O silêncio vara aquela alma que fala como o espelho do rio claro e calmo que diz mais do que cala. A fala é contraponto, o mesmo peso que falta ao silêncio que fala.



JOÃO CABRAL DE MELO NETO

A razão se mostra cristalina como vocábulo da linguagem. O Nordeste tem uma poesia seca, angular e sonora, medida com os calos do trabalho e feita ao alcance dos dedos. A pedra é uma flor e é leve como um balão! Esta é a sua sensibilidade. O que é que se pode apaixonar no homem do sertão? Para um sertanejo só existe a lucidez, a clareza, a vontade. O nordestino conhece a palavra esforço como ninguém. Sabe arrumar prateleiras e discernir o assovio do canavial. Rigorosidade e eloqüência com poucas palavras. Aprende-se poesia visitando os canaviais, passeando pelo Capiberibe, e pelas ruas de Sevilha, ou de Recife, a capital da americana Renascença.



TODOS OS VERBOS, TODOS OS VERMES

Compreender é uma vontade como a morte é uma compreensão. A morte nos empurra a entender que há o silêncio e o musgo, e desse vazio que se move o desejo de ser que é o desejo de saber, como um verbo. E os vermes estão cheios de desejos. E ser conjuga-se com todos os verbos. O que falam os verbos? senão falar, fazer, dizer, o que fazem os vermes? Bem... isso ainda começastes a compreender. Tudo bem, há mais frases para dizer do que todas que já foram escritas. E isso é possível, basta gritar para atravessar aquele rio. Todos os verbos fazem o homem e nenhum será ele. A escrita é o simulacro de Deus. É um verme como o verbo que apodrece em ruído e cheiro nauseantes, da nave, essa nau, a podridão, que nos leva para o lugar do Nenhum.




QUE TEU POETA ESTEJA SEMPRE APRONTANDO A CANÇÃO

Que teu poeta esteja sempre aprontando a canção. Da bruta floração de adolescer esse viço que é despertar com os teus versos que a solidão quis e para mim falou primeiro.

Que teu poeta esteja sempre aprontando a canção. É o pressentimento delicado de confessar que é tua aquela voz que a tarde me insiste em devolver num sopro dourado e morno. E era meu aquele tormento de te inventar e a tua invenção que me libertou (houvesse falhado o amor, era a certeza que eu passaria ao teu lado).

Assim, cantar é saltar com uma asa para o vôo levando a outra quebrada.



É O VENENO QUE DÁ A VIDA

Was bleibet aber, stiften die Dichter.

HÖLDERLIN


É o veneno que dá a vida

É o abismo que dá as asas

É o medo que dá a crença

É a crença que dá o viço.

É a morte que dá a vida

É a vida que dá a obra.

É a realidade que dá a verdade

É a verdade que dá conta disso.

É a palavra que dá o mundo

É o homem que se adianta

É o poema que dá o troco

É a poesia o que aviva

É a palavra que dá e tira

É a poesia o que fica.

Um comentário:

Tiago Germano disse...

Saudade, palavra triste, quando se perde um grande amor...