sábado, 17 de março de 2007



DER TOD LERNT ZUM LEBEN


Vielfach kann ich nicht ein sein

Zerstört, aber vollständig

lass ich dich wohl in der Nahe sein

um in jedem Bruchstück

dich bespiegeln auf mich

zusammenn: Baum und Sand


Unter die Schatten dieser Stimme

gibt es das Geräusch aus einem freien Feuer






domingo, 4 de março de 2007



A TORRE DE HÖLDERLIN


S
oldado, quem te ama?
Moriturus Salutat
MÁRIO FAUSTINO


Sete bois revestem o escudo de Ajax.

Heitor recusa o seio de Hécuba.

Odisseus se chamará Ninguém.

El Cid é desterrado para Burgos.

Três são os personagens na Comédia.

Robinson está só em sua ilha.

E quem saberá a tua beleza antes que em verdade seja? Digo-te que às vezes a morte se cansa – atravesso-me com a palavra que te desenha: Sol, ave-gema.

Queres amar meu braço descarnado? Queres amar só o que não te ameaça? É isso que assinalas. O que o mundo amarras em teus braços não será a pluma que a tempestade disse-me, ali, depois da tarde?

O poema refina o tempo.

Para o poeta, a palavra é sempre o que anseias, isso que se escreve em diferentes tintas num verso é jovem como a água da manhã mais nova e transparente como a lucidez mais impossível. É sempre o impossível tomando forma, por isso a loucura é uma palavra, e na loucura os loucos conversam, a sós, com Deus. É o amor pelas tempestades. Entre as nuvens.

Por isso Hölderlin é mais criança,

é o mais moço dos poetas.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007









A TRILOGIA DO BEIJA-FLOR


1.

TODO BEIJA-FLOR quando nasce é imperceptível, e ao nascer é do tamanho de outro beija-flor. Todo beija-flor aprende a eternidade das flores. É breve o seu beijo, é breve o seu desejo, é intenso o seu vôo. Todo beija-flor tem asas invisíveis para não tocar o vento. Todo beija-flor vive em êxtase: não canta.

2.

TODO BEIJA-FLOR quando encontra outro beija-flor não reparte a mesma flor. O vôo não é lugar para nada cuidar, o vôo é o nada vacilante no ar. Toda flor é um convite e todo beija-flor traz no peito um emblema de um reino feliz. Todo beija-flor é de utilidade pública, é patrimônio universal da poesia.

3.

TODO BEIJA-FLOR quando morre não vai para o céu dos beija-flores. Todo beija-flor quando morre se transforma numa coisinha leve e sem osso que a terra não consegue fincar. Todo beija-flor quando morre vai para a letra de um poema.







terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

CITAÇÕES DO QUIXOTE






“Cada um é filho de suas obras” (I, IV, 41)

“Pelo dedo se conhece o gigante” (I, IV, 42)

“Pior fora ainda o perigo de se fazer poeta, que, segundo dizem, é enfermidade incurável e pegadiça” (I, VI, 50)

“O que hoje se perde amanhã se ganha” (I, VII, 52)

“Muitos vão buscar lã e vêm tosquiados” (I, VII, 53)

“Quem mais se humilha mais se exalta” (I, XI, 65)

“Nem todas as formosuras cativam; algumas alegram a vista, sem renderem as vontades. Se todas as belezas enamorassem e rendessem, seria um andarem as vontades confusas e desencaminhadas, sem saberem em que haviam de parar; porque, sendo infinitos os objetos formosos, infinitos haviam de ser os desejos; e, segundo eu tenho ouvido dizer, o verdadeiro amor não se divide, e deve ser voluntário” (I, XIV, 81)

“Muito mais se há de estimar um dente que um diamante” (I,XVIII, 102)

“Era uma vez...o que era; se for bem, para todos seja; se mal, para quem o buscar” (I, XX, 109)

“Natural condição de mulheres – disse Dom Quixote – desdenhar a quem lhes quer, e amar a quem as aborrece” (I, XX, 110)

“Quem bem ama, bem castiga” (I, XX, 113)

“Quem canta seus males espanta (...) Quem uma vez canta toda a vida chora” (I, XXII, 122)

“As desventuras vem sempre na cola do talento” (I, XXII, 125).

“Nos moços o amor quase nunca o é; é sim um apetite, que, por se não endereçar senão ao deleite, apenas o obtém, logo diminui e acaba. São estes uns limites postos pela própria natureza aos falsos amores; os verdadeiros seguem outra regra; este duram sempre” (I,XXIV, 136)

“Toda honra das mulheres consiste na boa opinião em que são tidas” (I, XXXIII, 195)

“- Então – disse Camila – tudo que sai da boca a poetas namorados se há de logo ter por verdade?

- Como poetas não a dizem – respondeu Lotário -, mas como namorados nunca a chegam a dizer inteira.” (I, XXXIV, 203)

“Dar depressa é dar duas vezes (...) o que pouco custa pouco se estima (...) perde a ocasião perde a ventura” (I, XXXIV, 204)

“A virtude mais é perseguida pelos maus do que amada pelos bons” (I, XLVII, 279)

“Onde reina a inveja, não pode viver a virtude, nem onde há escassez, a liberalidade” ((I, XLVII, 281)

“Antes imagino que tudo é ficção, fábula e mentira, e sonhos contados por homens despertos, ou para melhor dizer, meio adormecidos” (II, I, 318)

“Onde a virtude estiver em grau eminente, verás que é perseguida” (II, II, 322)

“Há dois caminhos por onde os homens podem chegar a ser ricos e considerados: um é o das letras, o outro o das armas” (II, VI, 336)

“Nesta amarga soledade em que me deixas” (II, X, 347)

“A arte não vence a natureza, mas aperfeiçoa-a; de forma que a natureza e a arte, mescladas, produzirão um perfeitíssimo poeta” (II, XVI, 373)

“Quem dá o mal dá o remédio” (II,XIX, 387)

“O boi solto lambe-se todo” (II, XXII, 399)

“Quanto maior é o coração dum homem, maior é a sua valentia” (II, XXIII, 404)

“Quem lê muito e viaja muito muito vê e muito sabe” (II, XXV, 415)

“Quem não pode ser ofendido a ninguém pode ofender” (II, XXXII, 441)

“A maior loucura que pode fazer um homem nesta vida é deixar-se morrer sem mais, sem ninguém nos matar, nem darem cabo de nós outras mãos que não sejam as da melancolia” (II, LXXIV, 602)

CERVANTES DE SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. Trad. por: Viscondes de Castilho e Azevedo. São Paulo : Abril, 1981.

PAI, CONTA HISTÓRIA...


O REI SAPO

(Janosch, 1931 - )

Há algum tempo atrás, quando tudo já era como é, vivia debaixo d’água um rei sapo que tinha sete filhos. Todos eram muito bonitos e bastante verdes, porém o menor deles era o mais verde, tão verde que ninguém ainda conseguiu ver coisa mais verde ou esverdeada sobre a terra. Esse filho tinha, então, uma bola dourada, feita com ouro do sol, com a qual ele brincava todo dia, e nada mais do que isso era o seu fazer. Esse era o seu brinquedo favorito.

Ele embaixo d’água jogava a bola para cima, nadava atrás dela, agarrava-a e trazia a bola para o fundo. Jogava-a de novo para o alto e a segurava. Ele não fazia outra coisa senão isso e assim ele foi se havendo com tal habilidade nessa brincadeira que ele deixava subir a bola dourada cada vez mais alto para conseguir apanhá-la mais adiante quando o espaço entre a superfície da água e a bola era só de um décimo de milímetro.

Pois, se a bola fosse jogada fora da água, ela assim vagaria no ar. É claro. Perder-se-ia para sempre. E foi isso mesmo que aconteceu um dia.

Ele a perdeu, ela escapou da água e fugiu pelo ar.

O príncipe sapo nadou até a superfície e chorou e coaxou, pois ele não podia voar.

Aí, uma senhorita estava por lá junto à margem, uma donzela, uma moça, uma pessoa que lhe pergunta:

“Por que choras, príncipe sapo, e coaxas assim, diga-me?”

“Eu não posso chorar”, gritou o sapo, “minha bola dourada me escapou. Eu daria tudo para tê-la novamente comigo!”

“Tudo?”, perguntou a moça, “até tu mesmo, teu corpo e tua vida?”

“Tudo!”, replicou o príncipe sapo, pois a conversa já lhe parecia absurda e não tinha mais sentido. Pois o que significa: corpo e vida e tu mesmo?

“E tu casarias comigo?”

“Eu casaria contigo”, disse o príncipe sapo, “porém te apressa e apanhe a bola, pois tu também não consegues voar”.

Isso ele pôde dizer, pois ele havia pensado: como ela pode ser minha esposa, ela é imensa e muito gorda, nós não combinamos. E provavelmente ela também não consegue mergulhar.

“E eu poderia comer em teu pratinho dourado? E dormir em teu quartinho?”

“Simsimsim”, disse o sapo, “pois te apressa, senão a bola vai fugir”.

Então, a menina saltou um pouquinho no ar e alcançou a bola no último segundo.

Assim que o príncipe teve a bolinha nas suas mãos de sapo, disse alguma gracinha e mergulhou ao fundo.

Na certa ela havia pensado, a moça com certeza não saberia mergulhar, e com isso ele escaparia da sua promessa.

Porém, ela soube mergulhar.

Ela pulou com seu vestido e tudo e gritou atrás dele.

“Espera aí”, meu querido, eu mal posso te alcançar!”

O príncipe sapo nadava tão depressa com suas barbatanas para o palácio de seu pai. Ele bateu à porta atrás dele e ficou quieto diante de seu pai, o rei sapo, direito e discreto, pois o rei sapo era muito severo quanto às promessas.

De repente, alguém lá fora bateu na janela. “Quem é? Quem bate aí?, meu filho”, perguntou o pai. “Eu não conheço”, diz o príncipe, “Não sei. Não tenho a menor idéia.”

“Uma menina.” Replicou o rei sapo, pois ele pôde ver a moça pela vidraça. “É para ti? Tu fizeste com que ela se apaixonasse por ti?”

“Nãonãosim”, disse o príncipe, já disse que não”.

“Aha!”, exclamou o rei sapo, “prometeste a ela até casamento?”

“Humsim”, disse o príncipe e se pôs a rastejar debaixo da cadeira.

“Pois traga a moça para dentro e cumpra a tua promessa, pois a palavra de um sapo é a palavra de um nobre sobre a vida e morte.”

“Mas nós não damos certo, pai” replicou o príncipe sapo, “Ela é muito gorda. Enorme. Nada com ela não é como deveria ser.” − “Não interessa!”, exclamou o rei sapo. “Palavra é palavra e vale para sempre.”

Então o príncipe sapo abriu a janela e tentou puxar a moça para dentro. Porém ela era tão gorda, que ele até pensou, que assim ele manteria somente para si a promessa.

“Vá nadar lá fora”, ordenou o rei sapo. “E faça, o que tu prometeste!”

Então, o filho do rei sapo saiu a nadar, pegou a moça pela mão e nadou com ela pelo fundo do lago. Lá, acreditou que ela não poderia se manter por muito tempo, pois uma pessoa não é um sapo, e ela se afogaria. Então, ele acreditou que assim fugiria da sua promessa.

Porém, lá ela se sentiu muito bem, e ela falou:

“Tu não me prometeste que eu poderia comer no teu pratinho dourado?”

Então, o filho do rei sapo nadou de lá e apanhou seu pratinho. Trouxe com ele comida de sapo, minhocas, pois ele pensara, assim ela ia ficar com uma barriga verde, e com isso ele iria manter somente para si o prometido. Mas ela comera as minhocas com apetite.

“Tu gostas disso?”, perguntou o príncipe.

“Se gostas disso, meu querido, então eu também devo gostar.”

Aí, depois da refeição ela disse:

“E agora quero dormir no teu quartinho.”

Porém o quarto do filho do rei sapo era muito pequeno para uma pessoa, que era um pouco gorda, e o príncipe novamente pensou, lá ela vai se sufocar. E assim ele manteria somente para si o prometido.

Então, ele a trouxe pela mão e nadou com ela de volta ao palácio de seu pai. Ele a empurrou com força para o seu quarto e fechou atrás dela o capô, então, ele pensou até amanhã por si mesmo estaria resolvido.

Entretanto, quando ele retornou na manhã seguinte e abriu o capô, ela nadou feliz e despreocupada ao encontro dele.

“Dormiste bem?”, perguntou irado o filho do rei sapo.

Ela respondeu:

“Se é o teu quartinho e lá tu também dormes bem, então lá também eu devo dormir sempre bem, meu amado.”

Então, o filho do rei sapo tentou jogá-la contra a parede. Mas, ela era muito pesada. Por fim ele a agarrou e a engasgou com uma gravata, pois desse modo nenhuma pessoa poderia se manter debaixo d’água, e assim, ele pensou que ele manteria somente para si o prometido.

E ele percebeu, como ela ficou leve e mais leve. Quando no rosto dela ele olhava, ela se transformava de uma moça feia em uma bela e esverdeada rã princesa. Bela e tão verde que ninguém jamais viu coisa igual.

E quando o filho do rei sapo com sua noiva se dirigiu ao velho rei sapo, para lhe mostrar que ele pagou por sua promessa, disse o rei sapo:

“Veja, veja meu jovem”:

as rigorosas palavras do pai

são uma grande felicidade para toda criança.”

“Sim”, respondeu o filho do rei, e então o pai mandou atrelar os quatro mais velozes cavalos-sapos no barco de listas douradas, e o cocheiro Henrique trouxe-os para a ilha que tinha uma ponte para se tomar banho.

A caminho, eles ouviram um estampido e batidas. Foi quando o barco se partiu em dois.

“Henrique, as tábuas estão se quebrando!” gritou o filho do rei sapo.

Porém, não eram as tábuas. Era o aro de ferro que o fiel Henrique, servo do barco, mandou amarrar em seu coração, para que assim ele não se quebrasse, porque todos haviam pensado: ele, o mais belo e verde filho do rei não faria outra coisa em sua vida, a não ser brincar com a sua bolinha e não se casaria com ninguém. Isto aconteceu ainda por três vezes. E toda vez o príncipe sapo gritou: “Henrique, as tábuas estão se quebrando”.

“Não é o barco, são as tábuas, Senhor, que se quebram. É de novo apenas o aro de ferro que eu amarrei em meu coração, sobre o qual não se partiria de aflição por vocês.”

Ao todo eram três aros de ferro. E, de repente, tudo ficou calmo.

Sobre a pequena ilha, eles acharam uma casa de veraneio com chaminé, na qual eles podiam viver muito bem. A princesa rã conta ao seu esposo, que ela fora enfeitiçada. Ela fora ─ há muito tempo atrás ─ tão bonita como ela é hoje ─ filha de um rei sapo em um lago. Entretanto, ela nunca fora feliz. Uma vez, o belo verde de seu corpo não estava o verde que ela queria que fosse. Outra vez, ela provou a água que tinha muito sabor de peixe e outra vez ela provou muito pouco o sabor de peixe. As minhocas eram para ela muito curtas ou muito compridas. Resultado: ela era um pesadelo para todo mundo.

Então, o seu pobre pai foi até o sábio sapo Água-Verde, pai de todos os sapo, e lamentou-lhe a sua aflição.

“A maior infelicidade para ela seria”, disse o seu pai, “Tomaremo-lhe todos os seus vestidos e todas as jóias.”

“Não é o mal suficiente.”

“Então a gralha deverá assustá-la.”

“Ainda não é o suficiente.”

Então iremos encher as minhocas com pregos.”

“Não. Tudo isso ainda não é suficiente”, disse Água-Verde. Ela precisaria se transformar primeiro em um ser humano pobre e branco. Depois ela precisaria ser cortada em mil pedaços, e em seguida ser jogada em um abismo sem fim ou então ser engasgada com uma gravata debaixo d’água, para que assim o medo a torture e a quase mate”.

“Ó não, isso não”, apelou o seu bom pai, porém como Água-Verde era o sábio e tudo sabia, disse o pai:

“Se assim ela será feliz, assim deve acontecer.”

Foi, então, que ela se transformou nessa pessoa, vestida, e foi terrível.

“Porém tu, meu querido”, disse ela, “Tu me salvaste. Enfurecido”.

Mas agora a vida lhe era prosperidade e paz.

O filho do rei sapo pode pescar em sossego, e uma vez por mês eles visitam o velho rei sapo e escutam as suas severas palavras que ele coaxa.


Tradução do texto original em alemão para o português por: Benilton Cruz


Janosch (Horst Eckert), nascido em 11 de março de 1931) é um dos autores alemães mais consagrados como desenhista e escritor de livros para crianças.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

DAS PALAVRAS QUE SÃO BELAS


VOLTEIO


Das palavras que são belas

tenho o segredo de algumas

e a rota para todas elas

na caixa do poema

que a terrível esperança

escreveu no fundo de todos fundos

a grade e a linguagem.

Mas como bom prisioneiro

Tenho na mão o roteiro:

caneta, tinteiro, folha de papel,

e de novo o poema

que começa por se chamar:

e termina por onde começar:

que mais queres saber da palavra?




segunda-feira, 13 de novembro de 2006






ASAS

DE

ORFEU


Escritos do Inferno


BENILTON CRUZ


O AJUNTADOR DE PÁSSAROS

A palavra inventou o homem que é apenas a forma de perguntar a pergunta. Somos um sonho que se reencontra constantemente, por isso inventar e ler são a mesma coisa: a resignada invenção, como isso que acabei de te dizer agora. Sou Homero criança, e não deixarei o grego morrer mesmo que seja a última lança, esse hexâmetro em ruínas, esse canto que invoca as Musas da Morte no papiro que em rolos se juntarão a outras Ilíadas e a outras Odisséias, em pedaços que são todos os homens e mais eu, que me chamo Homero.

Eis aí a cilada: o que se lê não é o que está escrito. Não se extinguem as palavras, mesmo aquelas que não foram criadas. O homem é o animal que cata os rastros no abismo das línguas e não pode ignorar a morte que é a morada de cada palavra. Não pode ignorar o que recorda, se a poesia não é mais recordar. Não pode aceitar o drama que desfez o legítimo entendimento humano ao tempo que escolhe a obra e a faz esquecer.

Não há mais o que celebrar, a não ser:

Ajuntar os pássaros,

Colecionar os cacos.


PARA SER DIGNO


A tarefa da poesia é preparar e anteceder o caminho que nós nunca iremos saber quando começamos a escrever. O que não foi feito será obra da poesia, e o que já foi dito deve ser reescrito.

Então escrever é prover. Acontecer. Assim é o escapar da palavra; escrever é escapar do mundo: o poeta se salva do perigo de ser algo não sendo nada. Temos essa consciência de que no nada é que está a segunda parcela, aquela que te falta e te deixa triste sem que saibas o porquê.

Se não sabes lidar com o vago, o melhor é não assinalar, e até é bom escapar, sair de fininho, e deixar tudo como está.



PLATERO E ROCINANTE


— O que levas, Rocinante, um homem ou um sonhador?

— Não sei. Sei que ele é como eu sou. Melancólico e triste, e me diz que é o meu senhor. Eles dizem que são amigos como eu de Ruço sou. Talvez um pouco de amizade possa ser bom. Temos em comum a amizade, o que é um belo tema para um poema e para a vida.

— E tu, Platero porque és palrador?

— É verdade, conversamos enquanto comemos e nossos amos nem percebem o que dizemos.

— Se soubessem, nos matariam, pois só rimos e rimos dessas ridículas criaturas. Por isso evitamos a palavra. Não há nada mais doido do que querer dizer as coisas por meio desses grunhidos e desenhos.

Até Sancho é louco ao aceitar a Baratária ilha.

— Tanta loucura para tão pouca criatura.

— Enfim, a obra é melhor que a vida.

— Sem dúvida, e o caminho é a razão e a loucura.



O POETA NÃO SABE SABER SER


O poeta não sabe saber ser. Não sabe ser porque tem que oscilar e escrever. Escrever é não saber. O poeta escreve para que as palavras tenham sabor e não saber. Escreve para que o amor possa ser amor. Escreve para a beleza aparecer e ser. Escreve para dar sentido à ilusão do sentido. Como pode dizer a linguagem se ela é criação, mera passagem? O poeta calibra a miragem cuja palavra lhe é a perniciosa grade.

Escrever é uma aposta, sim, mas não esperem ganhar. É necessário abandonar um pouco tudo do que está ao redor, inclusive a vontade de vencer. É melhor aventurar-se: outra coisa não vale mais fazer. Arriscar é parte essencial deste jogo. Mas, escrever não é o jogo porque tudo pode se perder, mesmo aqueles que se dizem vencedor.

A poesia é apenas o começo do topo onde brinca de poeta o homem que sabe que a palavra acerta quando falha e erra quando era a certa. Daí que se inicia tudo de novo e de novo do fim o princípio apenas começa.



PARA TE DESPERTAR MAIS CEDO


Fiz isto para que não leias. Para que não me encontres em lugar nenhum. Para que saibas que sou mágico. Que escrevo com as maçãs derrubadas pelos relâmpagos. Que decifro o espelho verde daquele rio. Que conheço o caminho das aves que migraram para o oeste do teu coração. Eu não estou aqui e não sei do que dizer. Não sei porque te provoquei esta leitura. Talvez para te despertar mais cedo. Sei pouco de ti. Sei apenas que estás aqui.





VERSÂNIA

Onde o verso começar, lá estará o sinal para parar. Escrever é assinalar o fim. Toda palavra é o primeiro cinzel na pedra e sua faísca na sombra. A linha escreve-se em círculos e em manchas de tinta quer ficar. Sair como uma palavra e depois abandonar. Chamarei de Versânia pois que todos lembrarão de ti que és o começo, e também eu, que te adianto. Saberás que algum dia um leitor te descobrirás como um livro que esqueceste, assim como eu te esqueci e te encontrei no fundo da gaveta.

No escuro é que aprendemos a terminar de ler ou a começar a escrever. É assim que se escreve: abandonando e reencontrando. É só um livro que se escreve. Por que dois? Escrever um segundo livro é fugir do primeiro. A perfeição está morta com as neves de Munique.

Todo verso é um epitáfio: Sylvia Plath me ensinou este.




JÁ QUE SAÍ PARA VELEJAR

Já que saí para velejar, o que escrevo são coisas encontradas depois da procela. Juntar os cacos, reparar a quilha, reabrir as escotilhas, içar velas molhadas e apostar na ventania.

Já que saí para velejar, há tantas estrelas quanto há de mar. O céu se abriu sobre um caminho de águas. Tenho mil braços e seiscentos remos, sobram-me quatrocentos. O tempo vem do futuro e o passado não serve para mais nada. Preciso navegar porque preciso sair para viver mais que a vida. Boa sorte é a minha viagem.

Para o viajante, não existe nenhum porto e o comando é a ordem em uma palavra. A alma não é pacífica; o sonho é atlântico.

Se não navegaste, não conheceste.




DEUS ESTÁ A OESTE DE TEUS OLHOS


Quando procurares por Deus olhe para o homem, Deus está a oeste de teus olhos, está também onde começa o teu olhar. Está em tua fuga e em tua chegada. Ali, onde perceberes a derrocada. Onde os muros se levantaram mais alto. Onde a fome enfraqueceu o corpo. Onde a miséria adoeceu a alma. Ali também está Deus, porque Ele é feito do que te destrói. Também Deus tem suas misérias. Foi preciso escolher para existir; foi preciso eleger para subsistir. Foi preciso atravessar desertos e abrir os mares. Foi preciso subir montanhas e obedecer as sarças e andar descalço junto ao fogo. Foi preciso cansar o Livro e adorar as escrituras. Foi preciso ser Um para poder existir e dizer Eu sou o que sou para ser o que é Nenhum.



COMO VIVER DENTRO DA CHAMA

O mundo cabe dentro de um segredo, assim queiras me ouvir. Para isso basta o sono de uma árvore e sua sombra de milênios. Sob o colóquio dos pássaros deixarei meu livro aberto como uma lira, para aprender com os que partiram, que o segredo da canção é ouvir o que diz o trovão dentro do sonho. Depois, com a mão sobre Os Lusíadas salvarei o reino, nadando com um só braço como quem escreve apartando as ondas e não deixando o texto borrar com água salgada do tenebroso mar. Sim, sou brasileiro, dê-me passagem que ainda vou salvar o mundo inteiro, mas para isso ensinem-me a largar o poema na margem, especialmente ali, onde a curva dobra-se lenta, e geme como o eixo do mundo.



JOHANNES KEPLER


Errante como o astro mais distante,

Obsessivo como o sol incessante.

Acreditou na geometria como a língua

Que harmoniza a mente do Homem à de Deus.

Viu num floco de neve o hexágono

Dos átomos da molécula da água.

Suas leis dos movimentos dos astros

desvelaram a música das estrelas

como Pitágoras há mais de dois mil anos.

Seu epitáfio mostra a medida do seu esforço:

“Eu medi os céus, agora, as sombras eu meço.

Para o firmamento viaja a mente,

na terra descansa o corpo”.



QUANDO EU DISSE NA FRONTEIRA

Para o meu velho Whitman

Quando eu disse na fronteira que era brasileiro, não me envergonhei das perguntas que me fizeram e nem tive medo do preconceito de me verem melhor do que eles. Tive até a audácia de responder na língua deles que todos nós somos estrangeiros e que eu estava a caminho do que era meu e do que sempre me esperou do outro lado da fronteira.



A VIDA SÓ LHE AJUDOU A CONHECER-SE

Quando abriu o caderno, o que aprendeu faiscou-lhe o que sempre quis escrever. Parece que lembrar e esquecer é o ato verdadeiro de escrever, que é encontrar a palavra pelo meio. Passou a vontade porque não quis lembrar. As coisas não se completam. Assim são as palavras; elas têm sentido, quando as esquecemos e lembramos que esquecer pode ser uma forma de recriar. É necessário deixar esquecido para ser até mais bonito. Para escrever não é preciso muito movimento; só os olhos já são suficientes. Mesmo o sonho é uma confissão de um sonho para outro sonho. O homem está sempre no meio.

Quando ele abriu o caderno, na verdade, ele abriu um pouco mais que uma possibilidade de escolha. Escrever ou não, tanto faz. O que se revela está intrínseco e é volátil, é a parte mais escura dessa linha que olhas. Mesmo aqui, a palavra está sempre fora do alvo. No branco do papel tudo pode ser alvo, e a seta, como esta caneta, que é a arma que se protege do invisível.



PALAVRAS DENTRO DA NOITE

A morte existe para que lembres que no começo estão as ervas e o musgo. Para que lembres que o nada é ainda superior às coisas que imaginaste. Foi da morte que veio o caminho mais suave. Foi da morte que veio o canto de Orfeu. Foi do rio mais profundo que as sombras falaram todos os nomes à natureza e ao espírito num diálogo de pedras. A morte existe para que esqueças o trabalho que culminou a herança dos dias e para que repouses na lápide diurna. A morte é a forma mais digna de se respeitar a vida. É na morte que nos aproximamos da vida.



CORTA-SE O SILÊNCIO COM A FALA E O SILÊNCIO CORTA A FACA

Corta-se o silêncio com a fala e o silêncio corta a faca. O rúmen de treva a regurgitar do caos: a lâmina e a tempestade, esta palavra, a fenda que fala, a fímbria que falha e passa pouca e passa. O silêncio vara aquela alma que fala como o espelho do rio claro e calmo que diz mais do que cala. A fala é contraponto, o mesmo peso que falta ao silêncio que fala.



JOÃO CABRAL DE MELO NETO

A razão se mostra cristalina como vocábulo da linguagem. O Nordeste tem uma poesia seca, angular e sonora, medida com os calos do trabalho e feita ao alcance dos dedos. A pedra é uma flor e é leve como um balão! Esta é a sua sensibilidade. O que é que se pode apaixonar no homem do sertão? Para um sertanejo só existe a lucidez, a clareza, a vontade. O nordestino conhece a palavra esforço como ninguém. Sabe arrumar prateleiras e discernir o assovio do canavial. Rigorosidade e eloqüência com poucas palavras. Aprende-se poesia visitando os canaviais, passeando pelo Capiberibe, e pelas ruas de Sevilha, ou de Recife, a capital da americana Renascença.



TODOS OS VERBOS, TODOS OS VERMES

Compreender é uma vontade como a morte é uma compreensão. A morte nos empurra a entender que há o silêncio e o musgo, e desse vazio que se move o desejo de ser que é o desejo de saber, como um verbo. E os vermes estão cheios de desejos. E ser conjuga-se com todos os verbos. O que falam os verbos? senão falar, fazer, dizer, o que fazem os vermes? Bem... isso ainda começastes a compreender. Tudo bem, há mais frases para dizer do que todas que já foram escritas. E isso é possível, basta gritar para atravessar aquele rio. Todos os verbos fazem o homem e nenhum será ele. A escrita é o simulacro de Deus. É um verme como o verbo que apodrece em ruído e cheiro nauseantes, da nave, essa nau, a podridão, que nos leva para o lugar do Nenhum.




QUE TEU POETA ESTEJA SEMPRE APRONTANDO A CANÇÃO

Que teu poeta esteja sempre aprontando a canção. Da bruta floração de adolescer esse viço que é despertar com os teus versos que a solidão quis e para mim falou primeiro.

Que teu poeta esteja sempre aprontando a canção. É o pressentimento delicado de confessar que é tua aquela voz que a tarde me insiste em devolver num sopro dourado e morno. E era meu aquele tormento de te inventar e a tua invenção que me libertou (houvesse falhado o amor, era a certeza que eu passaria ao teu lado).

Assim, cantar é saltar com uma asa para o vôo levando a outra quebrada.



É O VENENO QUE DÁ A VIDA

Was bleibet aber, stiften die Dichter.

HÖLDERLIN


É o veneno que dá a vida

É o abismo que dá as asas

É o medo que dá a crença

É a crença que dá o viço.

É a morte que dá a vida

É a vida que dá a obra.

É a realidade que dá a verdade

É a verdade que dá conta disso.

É a palavra que dá o mundo

É o homem que se adianta

É o poema que dá o troco

É a poesia o que aviva

É a palavra que dá e tira

É a poesia o que fica.

AEDEUS


poemas de BENILTON CRUZ

PRÓLOGO

Três poemas apareceram na minha frente. Eram três odes que se assemelhavam às de Safo. Em todos os versos, perfeitamente escritos em grego antigo, só pude lembrar dessa palavra “AEDEUS”. Esta palavra se repetia nos três poemas, quase na mesma linha. Tudo isso aconteceu em um sonho.

Ao acordar, pensei em todas as possibilidades que levaram um papa a queimar quase toda a obra de Safo. Pensei na semelhança entre as palavras “théo” e “dios” que vão dar em Deus. Pensei também na palavra “aedo”, o antigo poeta-cantor, que vai inspirar Homero para compor a Ilíada e a Odisséia. Pensei na semelhança entre “aedo” e “Deus”. Claro fica para um bom leitor que AEDEUS é a junção de AEDO com DEUS.

Hoje, não se tem mais o poeta como o guardião dos antepassados, mas vejo que o verso ainda é um lugar para a memória, para a música, talvez a mais prazerosa forma do tempo. Em suas ruínas entre o verbo e o verme, o poeta (assim como Deus) ainda escora os suportes de um mundo em decadência. É nesse sentido que, talvez, caiba a palavra AEDEUS.


MITO

Num manto só, a natureza dorme sem as cores que diferenciam obras boas ou más. No fundo, a criação cava sua primeira palavra num tributo à treva ou ao sol. Um velho senta-se junto a fogueira e as crianças ouvem-lhe a voz da memória, que é a poesia. Um barco feito com a matéria dos sonhos viajou por toda a noite e trouxe na proa o pensamento mais antigo e a primeira imaginação. A voz das gerações passadas ecoa pela noite e revive na lembrança do jovem guerreiro.



ACEITE ESTAS ASAS NO TEU CORAÇÃO

Aceite estas asas no teu coração antes que Tróia resista em vão e o poema não se abra da barriga do cavalo e da espada que a noite precisa ocultar no ventre. Aceite as gaivotas e os carrosséis com cavalinhos nascidos da espuma daquele mar que demoraste a olhar. Para as tuas mãos tudo falta levantar o vôo. Aceite minhas credenciais de um reino distante, cujo caminho é a estrada que se alonga na estrada. Queira me dar razão, por favor, pois esta loucura ainda se chamará poesia, basta acreditar na ilusão. É assim que se conquista um grande amor. Ainda há tempo de salvar a humanidade. A tristeza que te olhou do fundo do prato encheu-me de uma fome que nunca senti e na alma soou o tambor do coração. Pelo menos sabes que existe o país dos desesperados. Aceite estas asas no teu coração como parte do meu abandono sagrado.



EU TE ENSINO A SOLIDÃO


Eu te ensino a solidão

para ficares completa

não aqui, no poema - mas onde

a palavra te guarda e

te revela uma palavra tua – aí, onde

não aprendeste a dominar

os ventos e só a escrita perdura

como uma eternidade

na dobra do papel. Sim,

saberei te decifrar como

um espelho ou como uma espada

não outra trégua. Só a tempestade

de erguê-la e dizer-te

assim começa ou assim termina.


PARA O MENINO QUE QUERIA CORTAR O SEU CORAÇÃO EM ALTO-MAR


García Lorca morreu como um menino: o seu crime foi incitar as gaivotas e o trabalho prateado das formigas.

Do seu sangue, o crepúsculo era jovem e a manhã azulava com cheiro de pólvora,

para abençoar as oliveiras

para silenciar o melro

para inclinar a papoula de volta para a meia-noite.

Era de sua nuca que sangrava aquela madrugada de agosto.

O homem é a imagem de Deus.

Deus é a imagem do homem.

Por isso sua memória será a do guardião de borboletas.

Um pranto por García Lorca às cinco horas da manhã.

Pelas cinco horas da manhã de todos os relógios.

Pela última frase escrita com o sangue moreno do seu peito andaluz,

pela lua cigana e pelos olhos de lua dos cavalos de Granada

e pela memória do amante menino que queria cortar seu coração em alto-mar:

Um pranto por García Lorca às cinco horas da manhã,

às cinco horas da manhã de todos os relógios.

Um pranto, ainda que não desperte a maçã,

ainda que o orvalho retarde-se nos vidros das janelas,

ainda que a aurora seja somente para as serpentes.

Um pranto, antes de rodar o girassol

por seu corpo que nunca foi encontrado,

porque era feito da mesma substância dos pássaros

da mesma substância das palavras.

Um pranto por García Lorca às cinco horas da manhã,

às cinco horas da manhã de todos os relógios.